Pelas encruzilhadas de Exu

Quando se pensa em macumba, logo vem à mente de todos o manjado “despacho” na encruzilhada, não é? Afinal, quem nunca se deparou com uma oferenda deixada na calada da noite numa esquina qualquer? Isso sem falar do enorme contingente de pessoas que, admitindo ou não, já levou um agradinho ao Povo de Rua numa encruza logo ali…

Poucos se dão conta, porém, das profundas implicações que as encruzilhadas têm e tiveram não somente na Mãe África, mas também na cultura europeia e mesmo brasileira pré-cabralina.

Os primeiros negros escravizados que aqui chegaram, nos idos do século XVI, eram de origem bantu (Congo e Angola), para os quais todo o universo criado era (e é) representado por uma encruzilhada chamada Dikenga, que reflete o ciclo de vida e morte e as interrelações entre os vivos e não-vivos. Notem que esse símbolo forma uma cruz – uma velha conhecida do Ocidente. Além disso, a fronteira do mundo dos vivos (nseke) para o mundo dos mortos (mpemba) é a chamada kalunga – um “rio cuja extensão não se pode medir” ou o mar, em uma das várias interpretações possíveis.

Ao chegarem ao Brasil (após longa jornada pelo mar, por essa kalunga…), esses negros viram os nossos indígenas fazendo oferendas propiciatórias nas encruzilhadas das matas para atrair a boa sorte e também para obter os favores e a boa vontade do Curupira. Vale notar que o Curupira, com seus pés invertidos e com a sua cabeça ígnea, parece encarnar muito bem o tipo de criatura que faria bem a travessia entre os mundos visível e invisível.

E nesse caldeirão de culturas, saberes e sabores que se formava, uniu-se a tradição da feitiçaria europeia, trazida pelas “bruxas” portuguesas degredadas, que ainda se recordavam de feitiços, encantamentos e evocações necromânticas nas encruzilhadas da Velha Europa, ecos da memória das oferendas deixadas a Afrodite e a Hécate no mundo greco-romano. Aliás, Hécate, deusa da noite, da lua negra e das bruxas, era agraciada nas encruzilhadas em formato de T… Isso lembra algo, não é?

Falando nisso, outro aspecto muito curioso diz respeito exatamente à figura da Pombagira não só como a senhora das encruzilhadas, mas como a encruzilhada ela mesma. Embora aqui não pretendamos entrar na complexa discussão linguística existente a respeito desse nome dado, no Brasil, ao Exu-Mulher, vale observar que pambu-a-njila, de onde deriva o nome da divindade bantu Pambu-Njila, é uma expressão composta que significa “caminhos cruzados”, assim como mbùmba nzila quer dizer “mistério das encruzilhadas”…

Pensemos ainda na encruzilhada como o encontro entre dois eixos: tempo e espaço, como nos sugerem muitos autores de sabor gnóstico. Onde essas duas forças se encontram é justamente o ponto pelo qual podemos acessar outros tempos, outros espaços e outros mundos com maior facilidade. É sempre em pontos de transição – so dia para a noite – da morte para a vida – da vida para a morte – que encontramos as melhores condições para viajarmos pelos confins da realidade. Portanto, a encruzilhada é muito mais do que um encontro de estradas pavimentadas no nosso mundo material. Encruzilhadas são pontos de encontro e surgem das maneiras mais surpreendentes.

De fato, perde-se na noite dos tempos e na bricolagem das tradições do mundo afora o aspecto sagrado e profano das encruzilhadas, locais de encantamento e de poder, situados além do espaço e do tempo, não pertencendo nem ao mundo dos vivos, nem ao mundo dos mortos; nem à morada dos deuses, nem ao solo onde habitualmente caminham os seres humanos. Seu centro remete à unidade inerente a todo o universo manifestado, aparentemente fragmentado numa miríade de formas e situações antagônicas, e seus caminhos nos apontam as escolhas da vida. Afinal, mesmo quem fica parado está fazendo uma escolha…

Assim é a Quimbanda, uma encruzilhada de saber e de poder. Nela, pisam vivos e mortos, num entrecruzamento necromântico entre os caminhos do aqui e do além. Em seu universo, os milagres são possíveis, pois as encruzilhadas são sempre um vir a ser cheio de esperança, porque pleno de possibilidades.

Mas, cuidado! Exu e Pombagira não escolhem por você, mas caminham ao seu lado. A escolha é sempre sua. E toda escolha traz consequências…

Tata Fogueira e Tata Tormenta

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